Ela entrou, bateu a porta e a trancou. Trancou-a dentro de si. Evitou sair, repudiou sentimentos, evitou visitas. Costurou sorrisos, remendou coração, tricotou a sua dor. (As suas dores.) Deu dois passos à sua frente, sentiu escorrer mais uma lágrima. Dessa vez quente. Percebeu quando alcançou o chão e elevou as mãos aos olhos em uma tentativa frustrada de enxuga-las. O coração acelerado, denunciava a dor palpitante, pulsante em suas veias. Dor viva. Sentiu queimar. O cheiro de álcool a entregava. Passou a noite bebendo, embriagou-se mais uma vez das mesmas doses daquele que um dia foi o motivo do brilho em seus olhos. Agora, obscuros e sem vida. Passou a noite afogando-se nas águas que um dia jurou jamais se arriscar. Viveu perigosamente, de portas abertas, destrancadas, vulneráveis. Olhou bem à sua volta, antes de tentar chegar ao seu quarto. A distância parecia enorme, tudo parecia sair do lugar, mover-se. Tudo, menos ela. Sentiu-se impotente, fraca, indefesa, invadida. Ela continuava andando em círculos, vivendo de migalhas, convivendo à sombra de um passado que distribuiu marcas nela. Marcas em seu corpo, marcas em sua alma, em seu coração. Marcas que se arrastaram, que a acompanharam ao longo dos anos. Ser violentada por aquele que jurou proteção fez seu coração sangrar, dilacerou sua alma. Causou estragos, marcas profundas que ainda estavam por cicatrizar. Deixou lembranças encarnadas em si, materializadas em forma de dor refletida em seu corpo, em seu olhar. Encarou por um instante seu reflexo em um dos espelhos da sala-de-estar. Estava com olheiras. Havia tempo que não dormia. Havia tempo que não se encarava. Havia tempo que não vivia, apenas fingia viver. Fingia sorrir, fingia amar, fingia não doer, não sofrer. Fingia não estar marcada, estando visivelmente marcada. Estando visivelmente ferida. Despiu-se ali mesmo. Peça por peça, sem pressa. Despiu-se de suas roupas e do "fingir". Despiu-se da dor. Se expôs! Chorou! Por um momento enojou-se de si mesma, por se permitir passar por aquilo, por ter se mantido omissa durante tanto tempo, por ainda desejar ardentemente ser amada por quem só a feriu. Enojou-se, gritou, chorou. Confrontou e olhou bem em seus olhos. Se encarou! Olhou bem as marcas espalhadas em seu corpo e as encarou sem nenhum receio desta vez. Estava despida! Marcada, mas despida. Subiu cada degrau sem pressa, durante o percurso até o banheiro o silêncio tomou conta de si. Conversava consigo mesma em um silêncio particular, repleto de palavras não ditas, apenas sentidas. Embora visivelmente em silêncio, dentro de si ela estava tratando suas dores, sarando suas feridas. As palavras iam surgindo em forma de lágrimas que escorriam de seus olhos e confrontavam o chão, marcando o piso de madeira amarronzada. No banheiro, ligou o chuveiro e entendeu que era hora de deixar o silêncio falar. Suas lágrimas se misturavam com a água que escorria do chuveiro. E com ela assim como a espuma, deixou escorrer as dores, as lembranças, as marcas. Deixou escorrer. Deixou escorrer! E pode ouvir nitidamente o silêncio dizer: Ei, você não merece sofrer!
Escritor: Reges Medeiros
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